sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

As cidadãs anónimas


«Não sei um dia mas alguma coisa me doía

Ou talvez não doesse mas havia fosse o que fosse

Era isso sentia a grande falta de uma árvore

Ruy Belo


[...] Lisboa deve às árvores que possui, às árvores de que se esquece, uma parte eloquente da sua beleza. Elas guardam, para nós, a cor, o alfabeto vegetal do silêncio, o atalho secreto da alegria.


O seu movimento parado é uma ilusão, pois as árvores são extraordinárias viajantes que se deslocam através de distâncias incalculáveis. Chegaram aqui vindas do Cáucaso, da Sibéria, do Tibete, da América…por ventos, por correntes marítimas, nos grandes invernos… ocultas nos pés dos escravos, escondidas algures na trouxa de um distraído mercador ou entre o pelo dos animais… E se estão ao pé de nós, sabemos também que estão sempre a partir. São fluidas. Mudam, de casca e de casa. Morrem. Migram da noite para o dia.


Aprendemos a contar por elas as estações do ano e as da nossa vida. Há as árvores da infância. As do nosso bairro, anos mais tarde. Há uma árvore que avistamos de relance em situações que depois não esquecemos mais. Lembro-me de ter visto o poeta Mário de Cesariny abraçar uma árvore como quem abraça um amigo. Foi uma coisa tão grande! - ficamos a vê-lo, encolhidos e calados que nem ratos.


Lisboa tem uma população admirável de árvores. Algumas delas estão classificadas e têm um estatuto semelhante ao do património construído classificado. Tudo isso está muito bem. Mas quando andamos pelas ruas de Lisboa e nos cruzamos com árvores elas não têm identificação alguma, são cidadãs anónimas! Raros são aqueles que as tratam pelo nome próprio. Mas outras cidades europeias têm junto das suas árvores, colado no chão, um pequeno letreiro com o seu nome.


Queria dedicar este texto ao Lódão que avisto da janela.»


José Tolentino Mendonça, “As cidadãs anónimas” in O hipopótamo de Deus e outros textos, 2.ª ed., Col. Alfinete 10, Assírio & Alvim, nov. 2010 (p. 77-8)

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